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Resma de Alfarrábios

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terça-feira, 26 de outubro de 2004

Preconceituoso Lingüístico Esclarecido

Não adianta: o idioma é uma forma limitada de comunicação. Quem costuma usar e-mail para discutir, ou pelo menos se comunicar com freqüência (o que, ainda que a contragosto, é meu caso), já invariavelmente deparou-se com situações onde falou uma coisa, o outro lado entendeu outra, e um dissabor se gerou desse mal entendido. Porque, quando nos comunicamos, usamos mais que as palavras prá nos fazermos entender. Usamos entonação de voz, expressão facial, gesticulações, e o olhar, que transmite sentimentos bonitos, mostra a alma e recebe Amor.

Mas há situações em que não há outra forma de comunicação possível que não a escrita. Eu trabalho com pessoas dos Estados Unidos, do Canadá, da Alemanha, da Índia, e a melhor forma de me comunicar com elas é através de IRC (Internet Relay Chat). Mesmo alguns de meus amigos antigos de São Paulo falam comigo freqüentemente por um sistema de Instant Messaging chamado ICQ. Eu não teria condições financeiras prá falar com todos eles por telefone, nem posso voltar à São Paulo (tampouco ir a Austin, Fishcue, Bombaim ou Montreal) com freqüência. Mesmo os excluídos digitais invariavelmente recaem sobre esse problema: aquela família no Sertão Nordestino não vai poder receber notícias do seu filho que está no Sudeste tentando conseguir melhores condições de vida que não por carta - não há telefone, não há condições de ver o filho pessoalmente. Nessas situações, vemos a importância de a língua ser instrumento que permita fácil e clara absorção do conteúdo que o interlocutor planejou passar para o ouvinte, já que na forma escrita nos comunicamos apenas por ela.

Ora, estamos então falando sobre padrões. Padrões, em Computação, são conjuntos de regras criados, que todos devem seguir (um exemplo que deveria ser mais amplamente divulgado - até prá não falarem, por exemplo, dos problemas encontrados em navegadores que não o Internet Explorer sem perceber que o problema é o Internet Explorer não seguir os padrões -, é o do World Wide Web Consortium: acesse se você desenvolve páginas, e olhe com carinho), para que todos possam entender o que você quis dizer quando programou um código, diagramou uma página, ou documentou algo. Mas no caso da Computação é mais fácil, porque trabalhamos com ferramentas mais limitadas. A língua é naturalmente dinâmica, muito mais abrangente (abrange inclusive toda a Computação), e com um público usuário muito maior e mais heterogêneo. O que não quer dizer que os padrões não sejam importantes - aliás, pelo contrário.

Em 2002 uma amiga me chamou de preconceituoso lingüístico, e foi a primeira vez que eu ouvi essa expressão. Por um desses enganos que a limitação de idioma faz, eu entendi que ela, estudante de Letras, estava escrevendo um livro sobre como falar e escrever corretamente, e procurava minha ajuda - eu fazia parte de um grupo informal na faculdade que corrigia erros crassos de português em textos com muito bom-humor. Quando fui falar com ela, fui rotulado como esse nome grande, e na mesma semana ela me deu um livro sobre o tema. Li com carinho - acredito que só através da tese e da antítese conseguimos senso crítico -, mas não concordei com quase nada do que estava escrito lá. Não acho nenhum problema alguém que não teve acesso a uma educação formal falar Português da maneira como consegue (influenciado pelo meio, ou até pela sua criatividade, como único instrumento que restou), mas acho que esse fato não legitima o Português que essa pessoa fala como "correto", tampouco que a partir daí possa aceitar-se que qualquer um possa falar como bem entender, sem se preocupar com forma, construção, e até mesmo corretude das declinações - ou seja, sem se preocupar com padrões. No mesmo ano, conversava com uma conhecida, estudante de Lingüística, e ela chegou à conclusão que, mesmo se evoluíssemos o idioma até um dialeto que só nós dois entendêssemos, ainda assim poderíamos chamá-lo de Português. Babilônia!

(Penso no assunto desde aquela época, e ele voltou à tona hoje, quando um amigo me repassou uma crítica justamente ao livro que tenho sobre o assunto. Não quero fazer propaganda, nem do livro nem da crítica, porque os dois me desagradam. A crítica é muito longa, trata cada parte do livro, mas com um extremismo desnecessário, que chega ao ponto da argumentação burra, sem conclusões - num dado ponto do texto, por exemplo, o crítico entitula o autor do texto como "de esquerda", de forma depreciativa e sem explicitar nenhum motivo: nem por que o autor é de esquerda, nem por que é ruim ser de esquerda. Daí, achei que deveria escrever algo mais moderado. E hoje me chamei de "Preconceituoso Lingüístico Esclarecido", em tom de brincadeira, quando bronqueei com uma pessoa que escreveu dois e-mails ininteligíveis para uma lista de discussão: sem pontuação, quase sem palavras ortograficamente corretas, e sobre um assunto importante.)

Então, tenho medo quando falam de preconceito lingüístico. Medo de cada vez mais eu conseguir me comunicar com cada vez menos pessoas. Medo de não me fazer entender quando precisar, simplesmente porque o ouvinte faz parte de um gueto diferente do meu. Respeito muito a iniciativa bem intencionada de não excluir o português coloquial, taxando-o de "errado", como se fosse um pecado. Aliás, foi Oswald de Andrade quem trovou uma vez:

"Dê-me um cigarro"
Diz a gramática
Do professor e do aluno
E do mulato sabido

Mas o bom negro e o bom branco
Da Nação Brasileira
Dizem todos os dias
"Deixa disso, camarada
Me dá um cigarro"


E eu aplaudo. Mas não façamos, por conta disso, caminhos para uma Babel futura. Comunicação é essencial, sobretudo na Sociedade da Informação, e não podemos deixá-la se perder num descuido.