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Resma de Alfarrábios

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segunda-feira, 17 de outubro de 2005

Referendados sobre o quê?

Em primeiro lugar, gostaria de esclarecer os motivos principais pelos quais estou escrevendo sobre o referendo sobre o Desarmamento. E há vários motivos para tal. O primeiro deles se refere às poucas pessoas que são leitoras fiéis destes alfarrábios, e que sempre que me encontram reclamam que Marla e a Circuncisão ainda é o artigo "atual" (a vocês, aliás, todo o meu Amor). O segundo é que faz tempo que não escrevo. Venho pensando em prestar Vestibular novamente ano que vem, e preciso rever meus métodos de redação por conta disso. E nada melhor prá (re)aprender a escrever que escrever.

Mas o principal motivo é que o referendo sobre o desarmamento está aí prá ser votado (será no próximo domingo, 23/Out), e ninguém sabe direito ainda sobre o que ele se trata. A mídia (seja grande, seja pequena) tem levado a discussão para o lado emotivo, e poucas vezes traz argumentos mais sérios do que "fulana morreu por ter arma em casa" / "fulano viveu por ter arma em casa". E vai ganhar quem fizer o marketing mais bonito. A melhor aproximação de uma análise séria que eu vi foi a d'O Estado de São Paulo, que em 15/Out p.p. publicou um caderno sobre o referendo de 20 páginas, das quais apenas pouco mais que a metade apelavam para casos pessoais. Mas só. O resultado disso é que as pessoas discutem entre si sem terem lido o estatuto (que não está facilmente disponível), e chegam a conclusões sobre assuntos que não estão postos nesta votação.

O referendo não opina sobre o desarmamento. Ele opina sobre a proibição de venda de armas de fogo em território nacional. Mais especificamente, o artigo 35 do chamado "Estatuto do Desarmamento", que diz que "É proibida a comercialização de arma de fogo e munição em todo o território nacional, salvo para as entidades previstas no art. 6o desta Lei.". Mas quem são as entidades previstas no artigo sexto? Eis o que ele diz:

"É proibido o porte de arma de fogo em todo o território nacional, salvo para os casos previstos em legislação própria e para:
I - os integrantes das Forças Armadas;
II - os integrantes de órgãos referidos nos incisos do caput do art. 144 da Constituição Federal;
III - os integrantes das guardas municipais das capitais dos Estados e dos Municípios com mais de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, nas condições estabelecidas no regulamento desta Lei;
IV - os integrantes das guardas municipais dos Municípios com mais de 250.000 (duzentos e cinqüenta mil) e menos de 500.000 (quinhentos mil) habitantes, quando em serviço; (Vide Mpv nº 157, de 23.12.2003)
V - os agentes operacionais da Agência Brasileira de Inteligência e os agentes do Departamento de
Segurança do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República;
VI - os integrantes dos órgãos policiais referidos no art. 51, IV, e no art. 52, XIII, da Constituição Federal;
VII - os integrantes do quadro efetivo dos agentes e guardas prisionais, os integrantes das escoltas de presos e as guardas portuárias;
VIII - as empresas de segurança privada e de transporte de valores constituídas, nos termos desta Lei;
IX - para os integrantes das entidades de desporto legalmente constituídas, cujas atividades esportivas demandem o uso de armas de fogo, na forma do regulamento desta Lei, observando-se, no que couber, a legislação ambiental."


Com o adendo do parágrafo quinto do mesmo artigo, que diz que:

"Aos residentes em áreas rurais, que comprovem depender do emprego de arma de fogo para prover sua subsistência alimentar familiar, será autorizado, na forma prevista no regulamento desta Lei, o porte de arma de fogo na categoria 'caçador'."

Repare que o artigo sexto não está em discussão no referendo.

E quem já tem arma, e direito a porte (que é diferente de licença)? O estatuto rege sobre isso também, no artigo 29, que também não está em discussão.

"As autorizações de porte de armas de fogo já concedidas expirar-se-ão 90 (noventa) dias após a publicação desta Lei.
Parágrafo único. O detentor de autorização com prazo de validade superior a 90 (noventa) dias poderá renová-la, perante a Polícia Federal, nas condições dos arts. 4o, 6o e 10 desta Lei, no prazo de 90 (noventa) dias após sua publicação, sem ônus para o requerente."


E quem tem licença (direito de ter a arma em casa, mas não de andar com ela)? O estatuto, no seu artigo 31, também rege sobre isso. E também não está em discussão.

"Art. 31. Os possuidores e proprietários de armas de fogo adquiridas regularmente poderão, a qualquer tempo, entregá-las à Polícia Federal, mediante recibo e indenização, nos termos do regulamento desta Lei [que rege sobre os valores a serem ressarcidos]."

Dito isso, os argumentos dos grupos políticos contrários e favoráveis todos são falhos. Uma rápida passada nas páginas dos grupos de defesa do sim e do não, lendo apenas os argumentos principais, pode constatar isso facilmente. Façamos o exercício:

Argumentos para o sim:

  • Existem armas demais neste país.

    Esse argumento não fala sobre o referendo. Fala sobre o desarmamento, que não está em discussão. Pode até ser verdade, mas não é sobre isso que o referendo trata. O artigo 35 não quer tirar armas do país. Quer deixar de vender.

  • Armas foram feitas para matar.

    Pode-se usar como base para outros argumentos. Mas, por si só, não é argumento para nada. Óleo quente foi feito para matar, e ninguém pensa em proibir o óleo quente.

  • Ter armas em casa aumenta o risco, não a proteção.

    Isso é relativo, e apela prô pessoal. Crianças morreram com armas mal escondidas em casa, mas famílias foram salvas com um tiro prá cima.

  • A presença de uma arma pode transformar qualquer cidadão em criminoso.

    Todo cidadão é um criminoso em potencial, por essa análise. Se for verdade, ter ou não ter uma arma é então pouco relevante.

  • Quando existe uma arma dentro de casa, a mulher corre muito mais risco de levar um tiro do que o ladrão.

    Relativo de novo. E se o ladrão for uma ladra, na verdade? Daí a chance dele levar um tiro aumenta? Ironicamente, alguém poderia dizer: "Talvez sejam os seios. Fica mais difícil desviar de um tiro virando de perfil quando você tem seios...". Eu sou um dos maiores fãs da estatística como ciência, e do seu poder, mas muitas pessoas não sabem fazer e usar estatística. Defender esse ponto de vista é o mesmo que dizer que 98 % dos criminosos comem pão eventualmente, então o pão é uma ameaça à ordem...

  • Em caso de assalto à mão armada, quem reage com arma de fogo corre mais risco de morrer.

    Se o problema é o risco, então ele se resolve com treinamento adequado de quem tiver licença prá ter armas em casa. Não tirando as armas de casa.

  • Controlar as armas legais ajuda na luta contra o crime.

    • O mercado legal abastece o ilegal.

      Mais ou menos. O mercado ilegal também sabe se abastecer por conta própria. Ninguém tem AK-47 em casa legalmente, e os morros estão cheios deste fuzil.

    • As armas compradas legalmente correm o risco de cair nas mãos erradas, através de roubo, revenda ou perda.

      Verdade. Mas uma fiscalização adequada (como a que o estatuto propõe - e a campanha do "sim" endossa) resolve isso. Não precisa tirar as armas de circulação para tal.

  • O Estatuto do Desarmamento é uma lei que desarma o bandido.

    Considerando esse conceito, a meu ver equivocado, de "cidadão ordeiro" versus "bandido", "bandido" é o que não cumpre a lei. Então, esse argumento é falso. O estatuto vai ser cumprido por quem cumpre a lei (isso é redundante até). Falso, portanto.

  • Controlar as armas salva vidas.

    Esse, novamente, não é sequer um argumento. Ele serve de base prá outros argumentos. Dependendo de como você controla, salva ou não salva vidas.

  • Desarmamento é o primeiro passo.

    Concordo, mas não é isso que está sendo votado. Estamos votando a proibição da venda de armas, não o desarmamento. O estatuto do desarmamento vai passar, com ou sem o artigo 35.

Agora, os argumentos para o Não:

  • Infelizmente, a proibição da venda legal de armas não vai desarmar os bandidos. Nem vai acabar com a violência e a falta de segurança.

    Verdade, mas não é justificativa prá não fazê-lo. Pode diminuir a violência (lembrando que violência não é apenas um ladrão roubando sua casa - bater no seu filho, por exemplo, é violência), não necessariamente acabar com ela.

  • Estão vendendo a idéia que o referendo é sobre o desarmamento e não sobre a proibição da venda legal de armas. Isso não é verdade.

    Verdade. Mas isso não é justificativa prá votar "não". Isso apenas diz que tem gente no grupo dos que defendem o "sim" que é mal intencionada ou está desinformada. Como no grupo dos que defendem o "não".

  • Proibir a venda legal de armas pode aumentar ainda mais o contrabando de armas e munições e criar mais espaço para a ação dos bandidos.

    Falso. Esse argumento vem do mesmo grupo que diz que são pouquíssimas as armas vendidas legalmente por ano. É completamente diferente do mercado de bebidas alcoólicas, cuja Lei Seca levou ao insurgimento dos gangsters. Não existe mercado prá uma linha de contrabando ferrenha como eles pregam.

  • Estão querendo desarmar o cidadão de bem, proibindo a venda legal de armas. Pois o bandido não compra armas legalmente.

    Ora, e o que define quem é "bandido" e quem é "cidadão de bem"? Se eu comprar uma arma numa loja, quer dizer que eu jamais irei assaltar alguém com ela? Se eu comprar uma arma ilegalmente, quer dizer que eu vou matar todo mundo que aparecer na frente? Essa é uma questão de índole. Quem quer fazer coisa errada a qualquer preço, ainda vai continuar fazendo. Mas não é isso que está em questão.

  • Estão querendo tirar um direito que o cidadão de bem já tem. E que pode ou não usar: o de comprar armas legalmente.

    Há muito tempo atrás, o "cidadão de bem" tinha o direito de matar outras pessoas, e um dia a sociedade se reuniu e decidiu tirar dele esse direito, instituindo como crime matar outras pessoas. Por que é proibitivo, não quer dizer que devemos votar "não".

  • É importante saber que o porte de arma (andar armado) está proibido (desde a aprovação do estatuto do Desarmamento, em 2003) e a posse de arma já está regulamentada. Não é nada simples comprar legalmente uma arma. É preciso apresentar mais de 5 certidões, exame psicotécnico etc.

    Verdade, mas isso não é justificativa prá se votar "não". É difícil roubar os cofres de um banco. Não quer dizer que vamos deixar soltos quem o fizer.


Mas o mais importante, e o que mais inquieta e entristece, é que estamos votando um artigo num estatuto, enquanto o país passa por uma série de importantes momentos, da crise política ao crescimento das relações internacionais, e nós "perdemos tempo" discutindo, com desinformação e apelos emotivos, um referendo que, na prática, pouco vai mudar na vida de cada um e cada uma de nós, qualquer que seja o resultado dele. Quando será que nos voltaremos praquilo que é mais importante, e deixaremos as "picuinhas" no lugar que lhes é devido - de lado?

Quando será?